Round 6 conquistou a audiência da Netflix ao fazer crítica social através de jogos mortais
Por Maria Luiza Cunha | Culturadora
Criada e dirigida por Hwang Dong-hyuk, a série “Round 6” estreou em 17 setembro na Netflix. Desde então, tem causado comoção nas redes sociais. A produção original se tornou a mais assistida da história da plataforma. Sendo assim, ultrapassou “Bridgerton” ao alcançar 111 milhões de espectadores. Em outros locais do mundo, a série recebeu o nome “Squid Game” (o jogo da lula, em português). Por aqui, o título escolhido foi diferente, afinal, não possuímos uma referência cultural equivalente ao “jogo da lula”.
Na série, acompanhamos a história de Gi-hun (Lee Jung Jae), um homem endividado, divorciado e viciado em apostas. Porém, tudo muda quando o protagonista encontra um homem que o convida para participar de uma competição como uma solução para os seus problemas financeiros. Assim, a vida de Gi-hun se entrelaça às de outros participantes, que têm o mesmo problema em comum, dívidas que não tem condições de pagar.
Os jogadores logo descobrem que a eliminação no jogo é literal. Na competição de sobrevivência, 456 jogadores participam de brincadeiras coreanas infantis em busca de um prêmio bilionário, 45,6 bilhões de wones (moeda sul-coreana), que equivale a cerca de R$ 209 milhões. Coisa pouca, né?
O k-drama (drama coreano, em português) conta com 9 episódios de cerca de 50 minutos. A cada edição, é possível acompanhar o desenrolar dos jogos e compreender os motivos que levaram os personagens a participarem do desafio. Como as brincadeiras possuem regras simples, o que emerge em primeiro plano são os dilemas éticos e morais que alguns participantes enfrentam quando só existem duas opções: matar ou morrer.
A dinâmica de Round 6
A primeira brincadeira que Gi-hun participa antecede a competição que acontece em uma ilha desconhecida. Após assinar um termo em que cedia um de seus olhos e rins para pagar uma dívida à agiotas, ele aceita jogar “Ddakji” com um homem no metrô. O jogo se assemelha ao “bafo”, em que o objetivo é virar a carta do oponente para o lado contrário. A diferença entre os dois é que no “Ddakji” é necessário virar a carta do outro jogador ao jogar a sua carta, enquanto no “bafo” isso é feito com as mãos. A cada rodada ganha por Gi-hun, ele recebe uma quantia em dinheiro, e a cada derrota, ele é esbofeteado. A brincadeira é um teste para identificar o quanto o personagem está disposto a comprometer sua integridade física e também oferece uma prévia da natureza da competição.
A competição é guiada por somente três regras: o jogador não pode parar de jogar, quem se recusar será eliminado e a maioria decide se quer encerrar os jogos.
Penalidades
Além dos participantes, há os guardas responsáveis por supervisionar o jogo, sendo um deles um policial infiltrado. Eles cumprem ordens de matar quem for eliminado sem titubear. Assim como os participantes, cada um deles cuida de seus próprios interesses e não há espaço para lealdade entre eles. Inclusive, alguns traficam os órgãos dos jogadores eliminados.
Ao longo da produção, as atenções se voltam principalmente para Gi-hun, o jogador número 001, que é o mais velho, uma refugiada norte-coreana, um gangster, um homem amigo de infância de Gi-hun e um imigrante nascido no Paquistão. Paralelamente, também é possível acompanhar o que acontece fora das brincadeiras e do dormitório dos jogadores através do policial infiltrado e o frontman, que é responsável por administrar a competição e tem a sua identidade mantida em segredo por boa parte da série.
Batatinha Frita 1,2,3
O primeiro jogo da competição, “Batatinha Frita 1,2,3”, surpreende a todos os participantes que logo percebem que ela está longe de ser para crianças. O jogo é semelhante a “medusa”, uma mistura de “estátua” com “pega-pega”.
Se você esteve nas redes sociais nas últimas semanas, provavelmente viu a imagem do robô responsável por comandar o jogo e as eliminações. Ele foi inspirado em uma menina que aparece em livros didáticos infantis da Coreia.
Colmeia de Açúcar
A prova da “Colmeia de Açúcar” é ainda mais simples, o que torna a situação mais tensa e deixa a eliminação mais absurda. Ela consiste em destacar um triângulo, um círculo, uma estrela ou um guarda-chuva de um biscoito feito de açúcar e bicarbonato de sódio.
Cabo de guerra e bola de gude
Os jogos “cabo de guerra” e a “bola de gude”, mais familiares para o Ocidente, também fazem parte da competição. Na competição, o jogo da “bolinha de gude” é o único que tem regras que podem ser determinadas pelos participantes. O objetivo é conseguir terminar o jogo com 20 bolinhas. Nesse caso, não importa os meios utilizados, mas o fim.
Ponte de cristal
Nas últimas duas competições os VIPs, homens ricos que patrocinam e assistem aos jogos, aparecem. Assim como os guardas e o frontman, eles mantêm suas identidades em segredo.
A penúltima competição é a “ponte de cristal”, nela o objetivo é atravessar uma ponte feita com placas de vidro comum e temperado. Se o participante pula no vidro comum, ele cai direto para a morte. A competição consolida a identidade de alguns personagens e cria desavenças.
O jogo da lula
E por fim, o “jogo da lula” é o que define o vencedor. Para vencer, ou os atacantes devem tocar a cabeça de uma lula desenhada no chão, ou os defensores devem empurrar os atacantes para fora da figura. Nessa fase, a desconfiança que já havia nascido na competição anterior se soma à fúria.
Uma narrativa não tão ficcional
Round 6 trata de uma parte da natureza humana ao mesmo tempo em que critica o capitalismo, a sociedade de mercado e a desigualdade social ao levar a competição a níveis extremos. A produção apresenta um ciclo infinito de humilhação em busca da sobrevivência de forma violenta, visceral e chocante. Round 6 suscita a pergunta: em que medida as condições extremas do jogo são semelhantes à vida real?
Inicialmente, os participantes desistem da competição quando entendem que os que falham são mortos, mas retornam ao perceberem que a realidade do cotidiano é mais implacável do que a participação no jogo.
Na disputa é permitido matar, mentir, trapacear e enganar. Tudo é lícito contanto que você saia vivo. Só há uma premissa que guia a competição: a igualdade de oportunidades. No entanto, ela é quebrada inúmeras vezes. Gi-hun é favorecido pelo jogador 001 no jogo de “bolas de gude”, um dos personagens ganha informações privilegiadas e a refugiada norte-coreana é prejudicada pela competição.
Violência
A violência da série não reside somente nos jogos. Em uma noite, após o gangster assassinar outro participante, há uma escalada da tensão. O grupo que se considera mais forte sente-se no direito de tomar o poder para si e promove uma chacina.
Em meio à tanta corrupção, apesar de Gi-hun estar longe de ser perfeito, ele consegue conquistar por sua simpatia e gentileza. Ele opta por formar alianças com pessoas com as quais se identifica e evita a violência quando possível. O amigo de infância dele, porém, se revela extremamente individualista e oportunista.
A produção mostra o sadismo tanto dos participantes, quanto dos guardas, do frontman e dos VIPs. Mas também abre espaço para o sacrifício, a amizade, a empatia e a cooperação.
Uma narrativa conhecida e bem executada
Round 6 usa uma premissa conhecida mas se garante na execução. O cenário, por exemplo, construído com cores vibrantes e elementos que remetem a infância, se contrapõe aos horrores da disputa. Além disso, ele também funciona como um labirinto que ajuda a criar e manter o suspense.
A sonoridade também exerce um papel semelhante. A matança de “Batatinha 1,2,3” ocorre enquanto uma caixinha de música toca “Fly me to the moon”, de Frank Sinatra. Ao invés de usar uma música dramática para aumentar a tensão, optou-se por uma composição calma, que explicita o absurdo da situação e causa ainda mais desconforto do que uma música mais intensa traria.
Round 6 trata sobre dilemas e dores que pessoas dos países mais ricos aos mais pobres podem compreender. A Coréia do Sul, apesar de ser um exemplo de desenvolvimento para países como o Brasil, sofre com uma imensa desigualdade social, que também é abordada no filme vencedor do Oscar de Bon Jong Ho, Parasita (2019). Talvez seja essa a principal razão para a produção estar recebendo tanta atenção ao redor do mundo.
Maria Luiza Cunha é jornalista em formação e colaboradora do Culturadoria. Ama entrevistas, ler e colecionar curiosidades.