A João Pessoa que as ruas contam: o Rio Sanhauá

Há 440 anos, em 5 de agosto de 1585, João Pessoa foi fundada. Diferente de outras cidades litorâneas, que costumeiramente iniciam seu processo de urbanização à beira-mar, o berço da capital paraibana foi o Rio Sanhauá, tema do terceiro e último episódio da série “A João Pessoa que as ruas contam”.

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O Rio Sanhauá é um braço do Rio Paraíba, localizado próximo ao atual bairro do Varadouro. Ali, em 1585, foi fundada a Cidade Real de Nossa Senhora das Neves, primeiro nome que João Pessoa recebeu.

Segundo a historiadora Letícia Hellen, que pesquisa o Rio Sanhauá e a relação com a comunidade do Porto do Capim, a escolha do local de fundação de João Pessoa pelos portugueses foi estratégica, para uma época em que a região era disputada também por franceses e holandeses.

“No sentido estratégico, militar, foi muito importante que a cidade fosse colonizada pelo rio, principalmente pensando na proteção contra as invasões de outras nacionalidades. Então, a cidade é colonizada no rio principalmente nesse sentido, como estratégica, política e militar daquele período”.

Nascente histórica

Luana Silva/Jornal da Paraíba

O professor de história da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) Ângelo Emílio destaca que a região do Varadouro era considerada propícia também para o nascer dessa urbanização, seja pela presença do rio, com a possibilidade de atividades portuárias, e terrenos ideais para a construção dos primeiros edifícios.

“Procurava-se lugares onde tivesse água potável próxima, que poderia ser ou não na praia, onde tivesse pedreiras, né, que pudessem ser exploradas para construções, né, e onde tivesse condições de haver portos, né, com a profundidade necessária para fazer as navegações”.

Nos primeiros anos da fundação de João Pessoa, a região do Varadouro era diversa. Enquanto já haviam casas imponentes, de famílias abastadas, especialmente na parte mais alta, as margens do rio abrigavam também palhoças e outras moradias de pessoas empobrecidas, como explica o professor Ângelo Emílio.

“Tanto havia moradias imponentes, quanto havia populações pobres, né, morando em palhoças em certas regiões dessa parte alta. Então, essas coisas se misturavam”.

No Rio Sanhauá, foi construído o Porto do Varadouro, que recebeu o apelido de Porto do Capim, mesmo nome da comunidade que vive ao redor do rio até hoje. Por três séculos, a região permaneceu como a mais importante do espaço urbano da capital paraibana que mudou de nome algumas vezes: Cidade Real de Nossa Senhora das Neves (1585), Filipeia de Nossa Senhora das Neves (1585), Frederica (1634), Parahyba (1654) e João Pessoa (1930).

Uma outra história no Rio Sanhauá

Gravura do Sanhauá feita pelo pintor holandês Frans Post.. Reprodução/USP

A historiadora Sylvia Britto, em sua pesquisa, encontrou registros que mostram que a fundação de João Pessoa foi uma estratégia do rei da Espanha, Filipe II, que chegou a assumir o trono de Portugal em 1580. O nome Filipéia de Nossa Senhora das Neves, inclusive, faz referência ao Rei Filipe. Tropas espanholas estabeleceram um forte em 1584 e isso foi fundamental para que Portugal conseguisse, finalmente, invadir o território.

“Desde 1574, os portugueses tentavam invadir a região do Rio Paraíba e falhavam repetidamente, por causa da resistência dos povos Potiguara. Só em 1584, com a chegada de tropas espanholas, em uma ofensiva bem organizada da Monarquia Hispânica, foi possível estabelecer um posto mais estável: o forte de San Phelipe y de Santiago, na margem esquerda do rio Paraíba”.

Sylvia Britto acrescenta que a data 5 de agosto de 1585 é simbólica, e que diversos episódios levaram à fundação de João Pessoa. Dentre esses episódios, a historiadora destaca a resistência dos povos indígenas Potiguara que fizeram alianças políticas importantes como estratégia de resistência.

“Os Potiguara não apenas conseguiram resistir, mas também exerceram um papel ativo de liderança, com uma autonomia incomum no período, representando uma ameaça à colonização ibérica na região.

De porto a abrigo

Moradores do Porto do Capim mantém forte vínculo com o Rio Sanhauá, há pelo menos 70 anos.. Reprodução/TV Cabo Branco

No começo do século XX, a urbanização de João Pessoa começou a correr em direção ao mar, especialmente após o saneamento da bacia da Lagoa, em 1913. Em 1935, com a inauguração do Porto de Cabedelo, o Porto do Capim foi desativado, e a região do Varadouro foi se tornando menos movimentada.

A região passou a ser amplamente ocupada por ribeirinhos, muitos deles antigos trabalhadores do Porto do Capim que ficaram desempregados após a sua desativação. Essa ocupação deu origem à comunidade que recebeu o mesmo nome do antigo porto e que mantém, há pelo menos 70 anos, uma forte relação com o rio.

A historiadora Letícia Hellen identifica uma relação dos moradores com o rio semelhante à que possuíam os povos indígenas que habitavam as margens do rio antes da chegada dos colonizadores. Além dos modos de subsistência, como a agricultura e a pesca, os moradores conservam elementos da tradição oral, como a crença nos encantados da natureza.

“Se a gente for pensar, por exemplo, em seres mitológicos que habitam esse território, que as comunidades tradicionais, essa essa tradição oral perpetua até hoje, como é o caso do Pai do Mangue, da Comadre Fulôzinha, é, habitam esse território e esse rio ele ele conecta todas essas populações”.

A comunidade do Porto do Capim já enfrentou tentativas de remoção para a construção de um parque turístico. A luta por permanência, especialmente das mulheres da comunidade, já foi até tema de um livro de um quadrinista francês.

Em 2025, o Ministério das Cidades anunciou o investimento de R$ 100 milhões no Porto do Capim para obras de drenagem, de soluções urbanísticas, de moradia, produção habitacional, conjuntos habitacionais e melhoria nas habitações da comunidade.