Apenas os Hermetismos Pascoais nos salvarão dessas trevas e nada mais
No início dos anos 2000, escrevi uma série de textos sobre música para a edição impressa do Jornal da Paraíba. Quem ilustrava esses conteúdos com suas caricaturas era William Medeiros, extraordinário artista paraibano. A melhor delas foi a de Hermeto Pascoal.
Na caricatura de William Medeiros, é como se a música saísse da cabeça de Hermeto para o mundo. É com ela que abro a coluna nesta segunda-feira, 15 de setembro de 2025.
Em 2002, W.J. Solha pintou uma tela na qual os músicos tocam para acordar a Menina Terra. Um deles, com o cabelo esvoaçante e uma gaita na boca, é Hermeto Pascoal.
Ao lado de Hermeto, na tela de Solha, há um trompetista que pode ser Miles Davis. Gênio consumado do jazz, Miles disse que Hermeto era um dos maiores músicos do mundo.
Hermeto Pascoal, nascido em Arapiraca, Alagoas, no dia 22 de junho de 1936, morreu neste sábado, 13 de setembro de 2025. O músico estava com 89 anos.
Em 1973, em Araçá Azul, disco radicalmente experimental, Caetano Veloso citava Hermeto na letra de Épico. A orquestra, arranjada e regida por Rogério Duprat, foi gravada em estúdio. A voz, Caetano gravou na rua, misturando Hermeto com Smetak.
Em 1984, no álbum Velô, Caetano Veloso voltou a Hermeto Pascoal, criando a expressão Hermetismos Pascoais e botando na letra do rock Podres Poderes:
“Será que apenas os Hermetismos Pascoais/Os tons, os mil tons, seus sons e seus dons geniais/Nos salvam, nos salvarão dessas trevas/E nada mais?”.
Em 1989, no álbum Estrangeiro, Caetano Veloso, outra vez, levou Hermeto Pascoal para a sua poesia e cantou assim: “O amor é cego, Ray Charles é cego, Stevie Wonder é cego/E o albino Hermeto não enxerga mesmo muito bem”.
Com sua música, Hermeto Pascoal incendiou o mundo da música e dos músicos. O Mundo Pegando Fogo já era o nome do trio do qual ele fez parte, no início da década de 1950, na Rádio Jornal do Commercio, no Recife.
De vida breve, esse trio inacreditável de música instrumental era formado por três sanfoneiros albinos: Sivuca, Hermeto Pascoal e seu irmão José Neto.
Depois do Recife, Hermeto Pascoal veio para João Pessoa. Tocou piano na orquestra da Rádio Tabajara. Ouvi dele que morou em Jaguaribe, perto do campo do Estrela do Mar.
Hermeto Pascoal começou a se projetar na era dos festivais. Com Airto Moreira, Theo de Barros e Heraldo do Monte, formou o Quarteto Novo. O grupo acompanhou Edu Lobo em Ponteio, vencedora do III Festival da Música Popular Brasileira de 1967.
O Quarteto Novo só gravou um disco. Profundamente nordestino, o álbum, lançado em 1967 pela Odeon, é um marco da música instrumental produzida pelos brasileiros.
Depois do Brasil, os Estados Unidos. Hermeto Pascoal com Airto Moreira e Flora Purim. Hermeto com Edu Lobo, numa improvável versão de Hey Jude, dos Beatles.
Hermeto tocando nos grandes discos que Tom Jobim gravava na América. Hermeto com Miles Davis, que ficou de quatro diante do talento excepcional do brasileiro.
Reza a lenda que Miles Davis se apropriou indevidamente de duas músicas compostas por Hermeto Pascoal. Uma delas, Igrejinha, se transformou em Little Church.
Também reza a lenda que Hermeto Pascoal, literalmente, nocauteou Miles Davis. Botou o jazzista no chão. Os dois estavam brincando de boxeadores.
O Hermeto do Quarteto Novo é um. O de A Música Livre de Hermeto Pascoal é outro. De 1973, A Música Livre… era o Hermeto depois do contato direto com o jazz. O disco tem Pixinguinha, Luiz Gonzaga, o Nordeste e as ousadias da música experimental.
Slave Mass, de 1976, foi gravado pela Warner nos Estados Unidos. Hermeto transforma porcos em instrumentos e nos deixa boquiabertos com Escuta Meu Piano.
Zabumbê-bum-á, de 1979, é brasileiríssimo. “Uma esmolinha pra Santo Antônio” – é assim. Mas também tem a fusion que ele viu Miles Davis inventar.
Aí, ainda em 1979, vem Hermeto Pascoal com sua performance no Festival de Jazz de Montreux, na Suíça. O albino de Alagoas no maior festival de jazz do mundo.
Um dia desses, faz pouco tempo, pensando nos maiores discos ao vivo da história do jazz, não tive a menor dúvida: o duplo de Hermeto em Montreux é um desses discos.
A música nordestina fundida com o jazz em temas marcados por um incomum senso de improvisação, que só encontramos nos maiores músicos de jazz do mundo.
O historiador marxista Eric Hobsbawm, que escreveu a História Social do Jazz, dizia que jazz é melhor quando visto ao vivo. Ele viu os maiores no palco na década de 1950.
O disco duplo de Hermeto Pascoal no Festival de Montreux pode ser o ponto alto de sua discografia porque flagra o músico no palco, criando, exibindo um impossível virtuosismo com uma clavieta na boca ou com suas mãos sobre um teclado elétrico.
Também faz um jazz nordestino, tocando sax, e paralisa a plateia, com sua flauta, ao executar Montreux, a música que acabara de compor num quarto de hotel.
Do jeito que exibia absoluto domínio dos instrumentos que tocava (teclados, sax, flauta), Hermeto Pascoal transformava uma chaleira em instrumento e nela fazia Round Midnight, clássico do jazz que Thelonious Monk compôs e Miles Davis gravou.
Hermeto gravou muito. Gosto de destacar Hermeto e Sua Visão Original do Forró, de 2018, gravado em Pernambuco. É um singelíssimo tributo aos ritmos nordestinos.
Seu último disco, de 2024, se chama Pra Você, Ilza. Belos timbres para adornar lindos temas. Ilza e Hermeto se conheceram no Recife e foram casados por quase 50 anos. Ilza é a mãe dos filhos de Hermeto Pascoal. Ela morreu no começo dos anos 2000.
Vi Hermeto Pascoal ao vivo algumas vezes. Também estive com ele algumas vezes. Era um músico arrebatador. Era um ser humano maravilhoso. Você pedia um autógrafo – fui testemunha dessa cena – e ele, na hora, compunha um tema e escrevia a partitura.
“Isso aqui é um pequeno tema para sax e improvisação jazzística” – foi a frase que disse ao admirador que, após um show, pediu um autógrafo com um caderno nas mãos.
Hermeto Pascoal foi (é) um dos maiores músicos do Brasil. Hermeto Pascoal foi (é) um dos maiores músicos do mundo. Isso não é o exagero aos quais, por vezes, a gente pode recorrer na hora em que a pessoa morre. Não. É a mais pura e cristalina verdade.
Em Hermeto Pascoal, tudo era música. Ele enxergava e ouvia música em tudo. Ele era a própria música. Mas usemos o verbo no presente: em Hermeto, tudo É música.